O primeiro-ministro é capaz de entusiasmar os seus apoiantes dizendo-lhes uma coisa depois de ter feito o seu contrário. Sem hesitar, nem pestanejar.
Pode ser um caso de falta de pudor. Mas também é a prova de que o osso que o líder do PS está disposto a servir aos competidores é duro de roer porque gera plateia, aquilo de que todos os políticos necessitam quando querem conquistar o poder ou apenas agarrarem-se a ele.
Este fim-de-semana, em Mangualde, perante o aplauso devoto de quem lá esteve, foi o que se viu. O líder do PS, que não gosta de ser apertado, sobretudo em público, zurziu no PSD. Forte e feio. Em resposta a Pedro Passos Coelho, que ameaçou abrir uma crise política com o "chumbo" do Orçamento do Estado para 2011, Sócrates atirou- -se à proposta de revisão constitucional, onde a inabilidade dos sociais-democratas deu origem ao seu guarda-redes frangueiro: tem muitos custos políticos e quase nenhum proveito.
Só acredita quem quer, mas o facto é que parece que há quem persista em crer. Enquanto José Sócrates surge no palanque para agitar a bandeira da defesa do "Estado social", o primeiro-ministro que, por coincidência, habita a mesma pele, lidera um Governo que restringiu as regras de acesso ao subsídio de desemprego, reduziu as pensões de reforma futuras e aumentou os impostos, directos e indirectos, sem deixar escapar qualquer classe de rendimentos.
Prepara-se, também, para fechar 700 escolas, apesar de se apresentar como defensor do sistema público de ensino, e introduziu taxas moderadoras em serviços hospitalares em que não existiam, embora reaja com espalhafato quando se fala em tirar do papel bens "tendencialmente gratuitos" que, na prática, não o são. A lista de cortes na despesa social levada a cabo pelo actual Governo não fica por aqui, num testemunho irredutível da contradição entre o que Sócrates diz e o que Sócrates faz.
Acontece que as manifestações de dupla personalidade do primeiro-ministro e o desespero em segurar popularidade à esquerda, contribuem para dramatizar a atmosfera, mas não têm qualquer outra utilidade. E até em matéria de ambiente político revelam escassa capacidade de aprendizagem e sentido de Estado. A táctica é tentadora, ainda por cima quando o adversário dá o flanco, mas um líder de Governo que dispõe de uma maioria relativa e que aceitou governar nestas condições, pode, mas não deve, remeter responsabilidades para os ombros alheios e recusar assumir as suas, que são bem grandes.
Como mostram os dados da execução orçamental durante os primeiros sete meses deste ano, a origem de todos os males nas contas públicas está longe de se encontrar controlada. A despesa corrente, sem juros, cresceu perto de 6%, e o mesmo sucedeu com as receitas fiscais, o que significa que a imparável espiral de gastos do Estado continua a ser alimentada com mais impostos.
Quem, como José Sócrates, tem a responsabilidade de governar, não pode refugiar-se em discussões estéreis e ignorar o problema estrutural. O primeiro-ministro pode acreditar que sim, mas não será com meros equilíbrios contabilísticos, alinhavados a pensar no curto prazo, que se conseguirá uma consolidação das finanças públicas que lhe assegure um lugar na história e, de caminho, uma economia saudável, livre da canga excessiva do Estado. Para isto, José Sócrates só precisa de ter alguma visão, em vez de andar obcecado com a revisão.
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